Neste capítulo, como exposto anteriormente, far-se-á a análise específica do mapa de 1569, suas origens, objetivos, consequências e execução. Serão analisados, à medida dos propósitos e limites desta pesquisa, quais foram os principais diferenciais em relação a outros mapas produzidos na época.
O título do trabalho de Mercator é Nova et aucta orbis terrae descriptio ad usum navigantium emendate acommodata ou Nova aumentada descrição da Terra com correções para uso na navegação. Portanto, como o próprio nome estabelece, o mapa era próprio para navegação e tinha como objetivo dar condições aos marinheiros de navegarem a seu destino, seguindo um rumo fixo. Buscava produzir uma carta marítima na qual o navegador pudesse desenhar uma linha reta entre dois pontos e imediatamente determinar um curso constante.
Convém lembrar que, no contexto histórico dessa época, o mar Mediterrâneo, após a queda de Constantinopla em 1453 para os turcos otomanos, deixou de ser a melhor rota de comércio das especiarias para a Europa. Portugal e Espanha detinham uma monarquia poderosa - após a guerra de reconquista de seus territórios - sobre os mouros, diferentemente das outras regiões da Europa que, apesar de terem várias cidades com burguesia comercial bem estruturada, não possuíam centralização política como os ibéricos.
Antes da perda do Mediterrâneo para os turcos otamanos, Falco e Rodrigues afirmam que já no século XIV, era alto o valor e o lucro das mercadorias negociadas, propiciadas por transações entre as cidades italianas de Gênova, Veneza, Pisa e as regiões do Mediterrâneo oriental (Constantinopla, Trebizonda, Alexandria, São João D’Ácre) e Egito. Para esses lugares, conforme se sabe, afluíam mercadorias transportadas por caravanas que vinham das mais diversas e distantes regiões da Ásia. Acrescente-se a tudo isso, condições políticas adversas, como, por exemplo, a Guerra dos Cem Anos (1337-1453) que, entre outros fatores, levaram ao declínio as grandes feiras de comércio que havia naquele eixo, desta forma, intensificando o comércio marítimo entre o Mediterrâneo e o Mar do Norte, principalmente Flandres (Antuérpia) e as cidades da liga hanseática (Lübeck, Bremen, Hamburgo, Dantzig).
Portugal e Espanha estavam fora desse jogo de comércio europeu e, por uma série de razões intrínsecas a esses países e que fogem aos objetivos deste trabalho discuti-las no momento, partiu, principalmente, Portugal, para retomar o comércio de especiarias, por uma nova via, através da África.
A primeira etapa dessa epopeia, conforme se sabe, inicia-se com a tomada de Ceuta, em 1415. Contudo, um dos mais importantes feitos foi o contorno do Cabo da Boa Esperança, em 1487, por Bartolomeu Dias, pois desde os tempos de Ptolomeu especulava-se qual seria o tamanho da África e quão ao sul ficaria essa passagem que unia os oceanos Atlântico e Índico, região que era muito conhecida pelos árabes, indianos, malaios e outros povos, mas não pelos europeus.
Vasco da Gama, em 1497/1498, chegou a Calicute, na Índia. O português Fernando de Magalhães, em 1519/1522, a serviço do reino da Espanha fez a primeira viagem de circum-navegação e poder-se-iam citar mais uma centena de ocorrências marítimas. No entanto, o fato de trocar-se o Mediterrâneo por essa rota, apresentou consequências mais abrangentes. Como mencionado no capítulo anterior, os pilotos das naus sabiam navegar pelos mares Mediterrâneo e Negro porque usavam com maestria as cartas portolanas. Porém, como navegar ao sul do trópico de Câncer e do Equador? Como utilizar a Estrela “Ursa Maior” se ela não aparecia no Hemisfério Sul? Como traçar uma rota Norte/Sul? Gaspar coloca seu ponto de vista: “A maneira de determinar a posição do navio utilizada no Atlântico ainda era a mesma empregada no Mediterrâneo, ou seja, baseavam-se praticamente em distâncias estimadas pelos pilotos e em direções magnéticas fornecidas pela agulha de marear”.
Essas navegações eram pioneiras, de modo que precisavam ser traçadas as marcações nas cartas náuticas para que as rotas pudessem ser realizadas por outras embarcações do reino. Entretanto, como marcar e posicionar uma localidade ou um trajeto com determinada assiduidade e exatidão sem saber ao certo a latitude e a longitude?
Bethencourt, em seu trabalho sobre a navegação em Portugal, expõe que:
“O modo de navegar com rumos e distâncias estimadas originava grandes erros, que geravam certa insegurança nos pilotos e exigiam novas formas de orientação no mar. Assim, os métodos tradicionais de navegação não eram adequados para longos trajetos oceânicos e por isso os navegadores passaram a buscar novas alternativas”.
O céu e suas estrelas deixaram de ser parâmetro para a navegação marítima europeia da época, e transformando-se em outro enigma a ser estudado. Desse modo, pode-se inferir que a necessidade criou o conhecimento. A busca nos desconhecidos mares e nas costas da África obrigaram os pilotos, comandantes e estudiosos do assunto a prepararem-se tecnicamente para essa nova forma de viagem.
Albuquerque faz uma afirmação importante:
“A transformação da arte de navegar em uma técnica de navegar, isto é, o salto de uma navegação guiada por processos elementares para uma navegação baseada na medida de uma coordenada astronômica de um astro, ponto de partida da rigorosa navegação moderna, é, sem dúvida, uma das consequências das navegações portuguesas por todo o Atlântico entre 1430 e 1490”.
Desta maneira, os portugueses e outros pilotos europeus baseavam seus cálculos na Estrela Polar e no uso do quadrante para medir sua altura, no entanto, abaixo do Equador não se via tal estrela.
Substituíram essa observação pela do sol com o astrolábio que tornava a leitura mais precisa e mais fácil, mesmo com a dificuldade do balanço dos navios.
Oliveira faz a seguinte observação:
“A cartografia portuguesa de origem náutica, teria atingido, no século XVI, o seu pleno desenvolvimento e veio modificar os velhos métodos de desenhar os mapas. Tornaram Lisboa o maior centro de difusão geográfica europeu permitindo que se emendassem radicalmente os obsoletos mapas-múndi”.
Os problemas apontados, relacionados com a navegação, levaram ao aprofundamento do estudo da Matemática. E um dos mais importantes teóricos e conhecedores, tanto de náutica como de Matemática dessa época, em Portugal, conforme se sabe, foi Pedro Nunes.
As efetivas contribuições de Pedro Nunes
Para Pedro Nunes, o estudo da natureza tinha de estar fundamentado na Matemática. Além disso, deixava claro que essas descobertas marítimas não ocorreriam sem o conhecimento de regras e instrumentos apoiados nessa área do conhecimento.
Foi autor de extensa obra sobre náutica e Matemática, destacando-se:
a)Tratado da Esfera: Tratado sobre certas Dúvidas de Navegação e Tratado em Defesa da Carta de Marear ,1537;
b) Sobre a Arte e a Ciência de Navegar, 1573;
c) Defesa do Tratado de Rumar do Globo para a Arte de navegar, 1537-1544.
As três obras em referência são de real importância neste estudo, pois se tratava de um conceito “chave” para a nova projeção cartográfica usando o mapa de 1569 e assim contribuíram para o avanço da cartografia marítima.
A obra Tratado da Esfera está dividida em três partes. A primeira é a tradução portuguesa da obra de Johannes de Sacrobosco (1195-1256), de Sphaera (ou Tractatus de Sphaera). Publicada em 1220, discutia a Terra e seu lugar no Universo. Foi dividida em quatro partes onde:
1) Trata a respeito do que seja a esfera, seu centro, o eixo, o polo do mundo, o número de esferas e qual seria a forma do mundo;
2) Aborda os “círculos dos quais se compõem a esfera material”;
3) Descreve o nascer e o pôr dos corpos celestes e a diversidade dos dias e das noites de diferentes localizações e também a divisão dos climas;
4) Analisa os “círculos e movimentos dos Planetas, e as causas dos eclipses”.
A segunda parte é a tradução anotada dos capítulos iniciais da obra Theorica Novae Planetarium de Purbáquio (Georg Peurbach) (1423-1461) e consiste em um texto elementar sobre astronomia teórica, compreendendo teorias do Sol, da Lua, dos três Planetas Superiores, de Vênus e de Mercúrio. Termina com o estudo do triplo movimento da oitava esfera, em que estariam situadas as estrelas fixas e o firmamento.
A terceira parte expõe a tradução portuguesa com anotações do primeiro livro da Geographia, de Ptolomeu (livro que já foi comentado nesta pesquisa no final do capítulo 1).